Fé e obediência

” Por intermédio de quem viemos a receber graça e apostolado por amor do seu nome, para a obediência por fé, entre todos os gentios”. Romanos 1:5

Contexto da igreja em Roma: Judeus que levaram o evangelho à cidade mantiveram práticas e costumes do judaísmo, em especial a circuncisão. Por ato do Imperador Claudio, os judeus são expulsos de Roma (ver Atos 18, Aquila e Priscila) e depois retornam. A igreja em Roma continua a crescer, mas no retorno dos judeus surge uma divisão (com os gentios) por causa dos costumes e da lei.

Romanos 1 e 2 – Paulo começa do começo, falando quem é o homem e sua inutilidade diante de Deus, por causa do pecado. E como todos estavam na mesma posição diante de Deus, não tinham condições de estabelecer um padrão e muito menos agir como juiz dos outros. Repetindo o que Jesus ensinou, Paulo diz que o critério com que eu julgar os outros vai recair sobre mim mesmo.

Então nós podemos pensar assim: “Agora estou mais tranquilo, porque é muita regra no meio da igreja, mas isso é coisa do Antigo Testamento. Vou relaxar, não preciso me preocupar em mudar nada do que eu faço e que me agrada e Deus vai ser misericordioso comigo”.

CUIDADO! Paulo não está falando (mal) da lei, nem está dizendo que no Novo Testamento não há mandamentos. Muito pelo contrário, pois ele diz que algumas pessoas antes da lei, ou sem conhecê-la, cumpriram a vontade da Deus dirigidas pela sua consciência, a partir da revelação do Espírito Santo. A lei é boa. O problema é o homem pecador.

Olha o que diz o Rom. 2:6 – Deus retribuirá a cada um segundo as suas obras (NVI = segundo o seu procedimento). Mais do que isto, no versículo 13 Paulo ainda diz assim: (…). Vocês entenderam bem? “Serão justificados”. Mas, Romanos não é o livro que fala da justificação pela fé? Como é que Paulo diz que serão justificados conforme as suas obras, seu procedimento, segundo a obediência à lei?

O problema é quando a tentativa de obediência fica no âmbito do exterior. Não conseguindo obedecer de forma plena, o homem gera uma aparência que não agrada ao Senhor. E acha que isso tem algum valor diante de Deus.

Romanos 3, 4 e 5 – Nos capítulos 3, 4 e 5, ao descrever o fracasso do primeiro Adão e, por consequência, das tentativas de toda humanidade em obter justiça, inclusive o que aconteceu com Israel na busca de cumprir a lei externamente.

No fim do capítulo 4, Paulo diz que Jesus morreu para que os nossos pecados fossem apagados, e ressuscitou para que pudéssemos estar justificados diante de Deus. Jesus é o último Adão (que encerrou essa herança maldita), mas também o segundo homem, pois iniciou uma história nova na forma como o homem pode agradar a Deus no seu íntimo e também com seus atos.

Romanos 5 – E assim estamos novamente unidos ao Pai, em paz com ele (5.1). Essa é a experiência de todo que nasceu de novo, que se converteu a Cristo, que recebeu o Espírito Santo dentro de seu espírito.

Romanos 6 –  Mas quando chega ao capítulo 6 da carta aos romanos, Paulo traz de novo aquele mesmo ponto que temos falado aqui. (Fé e Obediência)

Romanos 6:1 – “Que diremos, então? Continuaremos no pecado, para que a graça aumente ainda mais?” Provavelmente, alguém de Roma lhe fez essa pergunta. E a sua resposta foi (vr. 2): “De modo nenhum. Como viveremos ainda no pecado, nós, que já morremos para ele?

Quando eu nasci de novo e morri para o mundo, não há mais a barreira que me separava de Deus,  

Mas agora o Espírito Santo tem um trabalho a fazer na minha alma, que é gradativo, longo, de paciência e perseverança, mas que vai me transformar à imagem de Cristo na medida em que eu rendo ao Senhor o “CENTRO DOS MEUS DESEJOS”.

Romanos 7 – E Paulo escancara o problema no capítulo 7, ao confessar que ele mesmo tem essa dificuldade. Ele diz que o que ele quer fazer, não consegue, mas os erros que ele não quer fazer, acaba cometendo.

Qual o problema e qual a solução?

Por que, mesmo tendo fé em Cristo, não consigo fazer o que agrada a Deus, e ás vezes fico apenas na “aparência” da obediência?

A OBEDIÊNCIA pressupõe a lei, porque a lei estabelece um padrão de comportamento que eu tenho que seguir/obedecer. Foi assim desde o jardim do Éden (árvore do conhecimento).

Aliás, ás vezes eu me pergunto: por que Deus deixou a árvore do conhecimento à disposição no jardim?

  • Deus nos ama, demonstra seu amor e busca uma resposta de amor, honra, e obediência, mas para que essa resposta seja perfeita, ele precisa dar espaço para a falta de amor, para a desonra, para a desobediência a fim de que nossa resposta seja fruto de nossa escolha.

Jesus fez o mesmo com Judas, que recebeu a bolsa com recursos mesmo sendo ladrão. E Judas sucumbiu porque não amava a Jesus, e por isso escolheu fazer o que lhe dava prazer.

Não é diferente conosco. Este é o conflito de Romanos 6 e 7.

Deus deu a cada um de nós “espaço” para que eu escolha entre fazer a sua vontade ou me render às minhas fraquezas e tentações.

E esse espaço onde a minha vontade atua, tem um nome: COBIÇA.

No próprio capítulo 7, defendendo a lei no sentido dela ser boa, Paulo fala do nosso problema: Romanos 7.7-8. Algo parecido é dito na carta de TIAGO 1:14 e 15

Lá dentro do homem, existe essa COBIÇA, que segundo a carta de Tiago, é o lugar onde verdadeiramente o pecado é gerado dentro de nós.  A cobiça tem a ver com o interior do homem e o ato pecaminoso é a exteriorização do que nasceu lá dentro.

É exatamente o que Jesus disse no sermão do monte. EXEMPLOS: olhos/adultério; ódio/assassinato etc.

É interessante que, em grego, a palavra cobiça tem o sentido de atração, desejo, ou vontade pelo que é proibido, exatamente como Paulo falou em Romanos 7.7. Mas em hebraico, a palavra usada para cobiça (beten) é “ventre” ou “útero” e, talvez por isso, Tiago, que foi criado na tradição judaica, usa essa comparação interessante: o processo de gerar um filho até o seu nascimento.

Essa palavra no Antigo Testamento é traduzida do hebraico para o português como útero, ventre, íntimo, e coração, dependendo do contexto, mas sempre com a idéia de algo vazio, ou um espaço que pode ser preenchido, ou com filhos, ou alimentos, ou, em sentido figurado, com desejos. Um bom exemplo é Jó 20, versículos 15 (beten=ventre) e 20 (beten=cobiça).

20:15 – Engoliu riquezas, mas vomitá-las-á; do seu ventre Deus as lançará.

20:20 – Por não haver limites à sua cobiça, não chegará a salvar as coisas por ele desejadas.

É como se houvesse um vazio dentro do homem e ele precisa ser preenchido para que fique satisfeito. O homem pode optar por colocar dentro desse vazio coisas que agradam a ele, sejam pecaminosas ou não. Ele faz essa escolha pela beleza/estética, pelo gosto/paladar, por moda, por aceitação dos outros, ou por preferências de qualquer tipo.

Eclesiastes 11:9Alegre-se, jovem, na sua mocidade, e que o seu coração lhe dê muita alegria nos dias da sua juventude. Ande nos caminhos que satisfazem ao seu coração e agradam aos seus olhos; saiba, porém, que de todas estas coisas Deus lhe pedirá contas.

Independente de ser “lícito ou ilícito”, se aquilo que o homem obtém não foi gerado em Deus, mas serve apenas para atender a seus desejos, ele vai sentir fome e sede novamente. Só o que vem de Deus me satisfaz.

Provérbios 27:20O mundo dos mortos e o abismo nunca se fartam, e os olhos do ser humano nunca se satisfazem.

Quando o homem escolhe coisas que lhe agradam, sem saber se agradam a Deus, a insatisfação continua e a cobiça vai continuar agindo e pedindo mais. Mas se o homem optar por preencher esse vazio com a vida eterna que temos em Cristo, ele ficará satisfeito e até aquelas coisas que antes lhe chamavam a atenção, agora não tem tanta importância.

Um claro exemplo disso é a mulher samaritana, cujo diálogo com Jesus ficou registrado em João 4. A questão central não era a água em frente ao qual eles conversaram, nem o local mais adequado para adorar a Deus, e tampouco o vínculo matrimonial daquela mulher.

A questão é que tudo isso, lícito ou ilícito, demonstrava o enorme vazio sentido por aquela samaritana, que tentou suprir-se em coisas naturais. Jesus vai ao ponto central dizendo que Ele era a água vida, que sacia de forma plena e definitiva.

AI ENTRA A FÉ…

A FÉ aponta para o interior do homem, porque ela tem a ver com o quanto eu amo, confio e honro a Deus, e por isso desejo cumprir os seus mandamentos, OU SEJA, o homem que conhece e crê em Deus, deseja atender à vontade de Deus, porque sabe que ela é perfeita E SATISFAZ PLENAMENTE.

Se eu escolho agradar a Deus, a mesma graça que me salvou, ministrada pelo Espírito Santo no meu íntimo, vai me capacitar a cumprir os mandamentos. TUDO COMEÇA COM O TRABALHO DO ESPÍRITO LÁ DENTRO. É UMA RENDIÇÃO DA MINHA VONTADE.

Agora, cheio de amor e fé, querendo fazer a vontade de Deus, e com a graça atuando pela ação do Espírito Santo, eu consigo OBEDECER.

É isso que Paulo fala nestes capítulos iniciais, inclusive mencionando os que obedecem a lei de Deus sem conhecê-las. A sua consciência aponta para o que Deus quer. Esses têm a lei “gravada no coração” (Romanos 2.15)

Vamos lembrar, por exemplo, que os patriarcas viveram antes da lei. Deus diz que Abraão era seu amigo, que ele viveu pela fé e isto foi creditado a ele como justiça.

Abraão não tinha a lei escrita, mas de alguma forma Deus gravou no seu espírito um padrão, e Abraão obedeceu a esse padrão. Havia relacionamento com Deus. Isso fez com que ele entendesse o que agradava a Deus. Abraão obedeceu por fé.

Para Abraão, uma família, uma casa, um país, as riquezas e até um filho tão desejado, não valiam mais do que a amizade de Deus.

A fé, que ele recebeu do alto, preencheu o seu vazio e, então Deus começou a mudar o exterior, as obras/procedimento de Abrão.

Não foi num dia só. Teve uma caminhada e um progresso na revelação e na comunhão com Deus. Mas a chave é sempre a mesma: Deus me satisfaz.

Se com Abraão foi assim, conosco também deve ser.

É uma atitude que começa lá dentro (por fé) e se transforma em atos concretos, de obediência.

Romanos 8 – A continuidade do livro de Romanos vai nos levar ao segredo da vitória no capítulo 8: (vr. 8.2) “A lei do Espírito da Vida me libertou da lei do pecado e da morte”.

Quem descobre esse “segredo” se inclina para as coisas do Espírito e não para as da carne, como diz o vr. 6-8.

Usando o que estamos falando aqui, se eu me inclino para a carne, vou dar oportunidade à minha cobiça. Como um imã e um pedaço de ferro.

Mas se eu, humildemente, sabendo dessa tendência carnal que permanece no meu corpo, e por fé me inclino para aquele que é misericordioso, justo e poderoso, vou descobrir que há total satisfação em Cristo, mesmo que o contexto não seja aquele que mais me agradaria.

O aparente conflito que falamos aqui, entre fé e obediência, continua gerando distorções nos dias de hoje. Desde o apego exagerado a regras que mudam apenas o exterior da pessoa e não afetam os desejos da carne (Colossenses 2.23) até uma permissividade que não tem base no evangelho, mesmo apontando para algo poderoso: a graça de Deus. Quando eu uso a expressão “hiper graça”, estou dizendo que a graça é maior do que o meu pecado. E ela é, realmente. Mas justamente por isso a graça é capaz de me transformar à imagem de Cristo, de dentro para fora, até atingir meu procedimento que deve ser diferente do mundo. Se a graça não consegue me mudar e eu continuo a praticar pecados, essa graça na verdade deixou de ser “hiper”, e eu continuo escravo do pecado.

Bom, mas e de prático, o que isto tem a ver comigo?

Há muitas coisas nesta terra que nos atraem e satisfazem nosso gosto, olhos etc. Algumas são claramente ILÍCITAS aos olhos de Deus. Essas eu não preciso dar exemplos porque todos sabemos. Mas há outras coisas, que mesmo sendo lícitas, não nos aproximam de Deus, e até podem ser um obstáculo à nossa comunhão com ele.

O problema é a motivação que há no meu coração. Eu quero agradar a mim mesmo, ou, por fé, quero fazer o que agrada a Deus e me aproximar Dele?

Recapitulando…

Comecei falando de um trabalho do Espírito Santo em nós, que começa de dentro, mas se dirige para o nosso exterior.

Tudo começa pela revelação de Cristo e uma resposta de fé, que é um trabalho do Espírito Santo em nosso interior. Mas logo adiante esse mesmo trabalho do Espírito se converte em um “treinamento” que nos leva à obediência por fé. Não obediência a uma lista de regras, mas uma resposta de amor aos mandamentos, que mostram o que realmente agrada a Deus.

A CONCLUSÃO é que dá pra conciliar FÉ e OBEDIÊNCIA, quando eu descubro que obedecer aos mandamentos é uma atitude de fé. Eu conheço a Deus, amo o meu Senhor, confio totalmente Nele. Logo, a sua Palavra é digna de confiança, porque é DELE. E isto transforma a minha maneira de pensar. É uma renovação da mente.

Agora, observe como a carta de Paulo tem uma sequência lógica (lógica celestial e tremenda).

Romanos 12 – Depois de falar da salvação pela fé e do trabalho que é feito na alma do homem (interior) chegamos no Capítulo 12 de Romanos, que nos orienta a oferecer o nosso corpo, como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, numa forma de culto ou adoração não baseada em troca, busca de vantagens, ou algo místico (apenas). É um culto racional, no sentido de que a pessoa que teve a mente transformada e a vontade rendida ao Senhor, vai adorá-lo com atos ou procedimentos que agradam a Deus.

Se eu tentar mexer no exterior primeiro, não vai dar certo. Vou continuar escravo da lei e sem sucesso, conseguindo, no máximo, uma aparência de santidade.

Mas, o trabalho de Deus que começou no espírito, e alcançou a alma (desejos, pensamentos, vontade, sentimentos), agora requer uma oferta de mim mesmo, no exterior, com meus atos/procedimento: “Senhor, a tua vontade é boa, agradável e perfeita. Qual o teu desejo nesse assunto? Eu quero te obedecer, por amor e por inteligência (culto racional – porque se eu sei que a vontade de Deus é melhor, por que vou optar por algo menor do que isso?”

Diariamente, precisamos oferecer nosso corpo, nossos olhos, nossa boca, e tudo o que somos, para o Senhor que amamos, sob a forma de obediência.

Mas não fazemos isso porque somos obrigados ou para agradar alguém que não seja o Senhor. Nossa atitude de obediência é baseada na fé.

Meu conselho para cada um, pelo menos os que querem viver realmente assim:

Reconheça que há um lugar de cobiça dentro de você. Certamente há coisas na sua vida que não agradam a Deus (eu posso dar uma lista do que ainda existe em mim que não agrada a Deus). Todos nós temos algo a ser transformado. Peça ao Espírito Santo que te mostre isso, mas seja verdadeiro, porque senão não faz sentido. É entre você e Deus.

  1. Confesse e decida abandonar isto.
  2. E então ofereça esse assunto como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus.

Outro conselho diz respeito as pessoas que estão perto de você, especialmente quem discipula.

Quando vemos algum problema em alguém, a tendência é dizer: Faz assim, ou não faz mais isso. Meu conselho: MUDE A ABORDAGEM.

  1. Fale, sim, dos problemas que você vê, porque é o que a Bíblia diz. Mas fale para a própria pessoa e por amor, não com julgamento. Você pode se dar conta que percebeu errado ou pode ajudar a pessoa a rever sua relação com Deus.
  2. AQUI O SEGREDO: aponte para o coração, para o amor a Deus e ajude esse irmão a ver que tal atitude não agrada a Deus, e o afasta da comunhão plena com o Senhor.
  3. Ajude esta pessoa a ver que a aparência de um procedimento baseado “Na lei” não produz vida. Tem que ser verdadeiro, autêntico, mas decidido, firme em fazer a vontade de Deus.

Apenas para concluir esse breve resumo de Romanos, vale observar que só depois do capítulo 12 Paulo vai falar de coisas práticas sobre o relacionamento entre eles, sobre a vida na igreja, sobre o amor, o suporte, a vida em comunidade. Por que? Porque primeiro o interior do ser humano precisa ser transformado, para só depois se ter um resultado positivo em termos de atitudes novas.

Eu queria concluir fazendo um alerta para nós todos, que vivemos neste tempo tão conturbado da história. Nunca o mundo se mostrou tão atrativo para os filhos de Deus. Logo, dizer não a estas atrações vai requerer esse processo de conquista do nosso interior, uma atitude de entrega sacrificial (Romanos 12.). E há um motivo para isso: Deus vai fazer a separação entre o que é santo e o que é profano (PROFANO = comum, não separado) na vida de todos os homens, começando pela igreja.

Então, conforme Paulo diz em Romanos 13:11-14, é tempo de acordar (todos nós) e buscarmos essa presença mais intensa do Espírito e da vontade de Deus no dia a dia.

José Gustavo Miranda é casado com Madalena, pai de duas filhas e três netos. É um dos presbíteros na comunidade de discípulos em Porto Alegre.

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